(Gran Torino, 2008, 116 min)
Um outro laço do western
(Por Guto Leite)
Para a minha cabeça simplista e dicotômica, existem dois tipos de filme. O primeiro é composto por aqueles que pretendem atender ao gosto cinematográfico mais comum – faceta moderna de nossas necessidades épicas – e, talvez principalmente, movimentar a monstruosa indústria do cinema, das bilheterias às produções, passando pela glamourização de atores medíocres. O segundo tipo, ALÉM de também atender à nossa precisão cinematográfica mais chã, busca fazê-lo de maneira um pouco mais requintada, testando (consciente ou intuitivamente) os limites da forma, e com frequência lança para além deles questões sobre nossa narrativa real, vivida, bem menos épica, obviamente, tendo repercussão no plano ético e extra-narrativo das pessoas. Embora ainda ganhe algumas horas assistindo a filmes do primeiro tipo, prefiro dedicar meus incipientes esforços analíticos para comentar estes últimos, aos quais enquadro, para simplificar, no nome genérico de “obra de arte”. Pois bem, Gran Torino (2008), de Clint Eastwood, é uma obra de arte.
A qualquer amante moderato da sétima arte não é permitido mais se surpreender com a maestria do diretor em contar suas histórias. Contra aqueles que ainda o vêem “somente” como um talentoso ator de western, se apresentam títulos como Os imperdoáveis (1992), As pontes de Madison (1995), Sobre meninos e lobos (2003), Menina de Ouro (2004) e outros – calma, não esqueci de alguns dos mais notáveis, só vou citá-los adiante -, isso sem falar dos mais obscuros, mas muito bem realizados, na minha opinião, Bird (1988) e Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal (1997). Se é possível vislumbrar alguma tendência na filmografia do diretor, aproximo o filme de 2008 com outros que parecem trazer perspectivas alternativas ou desesperançosas em relação ao sonho americano. Nesta linha, estariam os filmes Um mundo perfeito (1993), Cartas de Iwo Jima (2006), A conquista da honra (2006), A troca (2008) e finalmente Gran Torino. Todos, de maneira mais ou menos acentuada, e mais intensamente nos últimos anos, parecem dizer “opa! talvez tenha algo errado por aqui”, o que se torna ainda mais emblemático se considerarmos a forma como Eastwood se celebrizou como ator.
Como sou um típico primeiro Kowalski – nome da principal personagem -, é claro que tenho ressalvas pontuais acerca de certas cenas do filme e até mesmo, de maneira mais ampla, à boa parte da atuação de Bee Vang como o menino Thao Vang Lor. Entretanto, é estrondoso o acerto do cineasta nas demais escolhas que teve para narrar a história de um operário da Ford, e também veterano da Guerra da Coreia, que precisa lidar, a partir da morte da esposa, com imigrantes asiáticos, principalmente, que compõem a maior parte de sua vizinhança. Como uma boa surpresa, o filme não se perde no roteiro batido de um turrão que aprende com as belezas da vida e muda sua natureza. Ao contrário, até o último momento, Kowalski se apresenta como aquele veterano um pouco distante das convenções mundanas e que tende a reagir de maneira excessivamente enérgica a conflitos comuns.
Dois trechos do filme – e que não me desculpem aqueles que ainda não o viram – precisam ser comentados a favor do meu argumento e do talento de Eastwood. O primeiro dele é uma fala, talvez a fala clímax do filme, aquela em que desembocam todas as falas precedentes, que Kowalski diz a Thao. Ei-la, puxada razoavelmente da memória: “Você sabe o que é matar um homem? Seria a pior coisa do mundo, se você depois ainda não recebesse uma medalha por assassinar um “china”, que provavelmente estava implorando por sua vida”. Acho que não preciso remeter essa fala à dimensão maior da assimetria de forças entre os estadunidenses e as culturas com as quais guerrearam (pós-Segunda Guerra), como também à prática reiterada da medalha de honra como prêmio individual no coletivo de uma cultura bélica.
O segundo trecho também merece um parágrafo para si. Ao final do filme, enquanto se espera que Kowalski vai fazer como sempre e reagir com armas à violência das gangues contra seus vizinhos, ele comparece à sede do grupo desarmado, os provoca, finge que vai tirar uma arma, retira um isqueiro e é alvejado pelos criminosos, já com dezenas de testemunhas nas janelas próximas, o que leva à prisão do grupo. Seria um apontamento para futuras soluções de paz ou de anti-violência? O surgimento da polícia americana na cena, posteriormente, invalida essa hipótese? E, de forma menos imediata, como entender a única confissão da vida de Kowalski, algumas cenas antes, a um jovem padre, quando ele só confessa pequenas traições e miudezas, sem tocar no assunto da Guerra da Coreia?
Enfim, havendo ou não essas questões maiores envolvidas, Gran Torino é um filme muito comovente! Mesmo com algumas atuações inconstantes, ressalva feita ao próprio Eastwood e a Christopher Carley (como o Padre Janovich), o filme consegue nos remeter a esse momento delicado de contestação da cultura hegemônica em que estamos vivendo, não fortuitamente anteposta, no filme, à cultura asiática, sem abrir mão da história do homem – o filme começa com o enterro da senhora Kowalski e quase termina com o enterro de Kowalski – e de um humor bastante acertado na rabugeira do protagonista e suas tentativas de lidar com uma cultura bastante diferente da sua. Certamente Eastwood tem sido um dos melhores motivos recentes para aqueles que gostam de ganhar seu tempo com esta categoria genérica, o segundo tipo de filme, que este apaixonado aqui costuma chamar de “obra de arte”.
Título: Gran Torino
Original: Gran Torino
País: EUA
Elenco Principal: Clint Eastwood, Christopher Carley, Bee Vang.
Companhia: Matten Productions
IMDB: http://www.imdb.com/title/tt1205489/
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